Frederick G. Williams, professor e tradutor, é convidado do Festival Literário de Macau
“Temos que deixar ao lume das águas todas as tribulações e todas as encrencas para ter paz”
Frederick G. Williams, professor e tradutor, é convidado do Festival Literário de Macau numa edição em que se assinalam os 100 anos do nascimento de Jorge de Sena. Em entrevista ao PONTO FINAL, Williams recorda o poeta, seu professor, e fala também da religião como princípio basilar e orientador da sua existência.
TEXTO: CATARINA VILA NOVA
FOTOGRAFIA: EDUARDO MARTINS
Homem da sua igreja, Frederick G. Williams apresenta aos 78 anos uma fé que diz nunca ter conhecido abalos. Descendente directo do conselheiro do primeiro presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – conhecida simplesmente como mórmon – o professor, agora reformado, diz que, para si, a dúvida se assumiu como exploração e não como um voltar de costas à igreja. Acercou-se da língua portuguesa levado pela religião até ao Brasil no papel de missionário e, até hoje, não perdeu o sotaque que por lá se enraizou. Decorridos já dois anos de vida universitária, interrompidos pela missão, quando foi tempo de regressar à academia, a escolha do percurso a seguir era clara: o português como idioma e cultura. Nos bancos da faculdade teve como mestre Jorge de Sena, poeta duas vezes atirado para o exílio pela ditadura. Primeiro, a portuguesa, depois, a brasileira. É na Universidade de Wisconsin que os caminhos de ambos se cruzam pela primeira vez, voltando a encontrar-se mais tarde na Universidade da Califórnia enquanto professores. Do poeta e eterno mestre, Williams recorda o incansável fumador – algo que, para um mórmon, nem sempre foi fácil suportar, confessa – mas também o professor afável e sempre disponível com uma “mente enciclopédica”. Já no final da sua vida, Jorge de Sena concedeu aquela que terá sido a sua última entrevista a Frederick G. Williams. Dela ficou a amargura de nunca em vida ter sido reconhecido como uma das figuras máximas da cultura portuguesa do século XX. “A mágoa ficou sempre, o seu país nunca o aceitou”, lamenta o tradutor.
Quão forte foi a presença e influência do seu trisavô e homónimo, Frederick G. Williams, conselheiro do primeiro presidente da igreja mórmon, na sua infância?
Sendo um dos líderes da igreja, ele era muito conhecido. Aliás, ele está nas próprias escrituras e era muito falado. Eu, por ter o mesmo nome, tinha que respeitar e tinha que seguir na linha correctamente por causa dele. Teve sempre muita presença.
Acredita que ter sido criado no contexto da igreja mórmon foi determinante para que acabasse por escolher esta religião?
Sem dúvida. Mas devo dizer que muitas pessoas que têm a mesma experiência, ou seja, que nascem dentro da igreja, nem sempre ficam porque o testemunho é uma coisa pessoal, uma coisa individual e cada um tem que ter. Se não tiver, sai da igreja.
Qual acredita ser o papel desempenhado por uma educação religiosa, seja ela qual for, nas crenças futuras de uma pessoa? É determinante?
Nós acreditamos que tanto a mente como o coração têm um papel importante no que chamaríamos a conversão. Se for apenas a mente e não sentir o espírito, então não vai ficar. A igreja é a mesma igreja que Cristo organizou quando esteve na terra, tem a mesma organização com os apóstolos. A maneira como os conversos foram convertidos na época dele serve como exemplo no nosso dia. Antes de Cristo ser crucifixado, ele falou com os seus apóstolos e disse: “Eu voltarei quando ressuscitar”. Quando ele o fez disse: “Não comecem a pregar até receberem o Espírito Santo”. Então aguardaram e quando veio foi uma força incrível. Esse é o espírito que converte as pessoas.
No seu caso quando diria que esse momento aconteceu?
No meu caso ocorreu cedo. Ocorreu quando o meu pai era presidente da missão no Uruguai e eu, um jovem. Tivemos uma conferência e o coro estava cantando…
Na sua vida nunca teve um momento de dúvida em que quis virar as costas à igreja?
Nós acreditamos que esta vida é uma vida de provações para ver se seremos fiéis aos mandamentos de Deus. São duas as razões pelas quais viemos à terra: porque achamos que o nosso pai celestial, Deus, é verdadeiramente o nosso pai e somos filhos espirituais dele e ele nos mandou à terra para receber o corpo e para sermos provados. Sempre haverá tentação, desafios, perguntas, mas quando seguimos uma pergunta, honestamente, podemos receber a resposta. Se fazemos a pergunta só para mofar, não. Mas se estamos sendo honestos e queremos saber, vamos saber.
A sua fé nunca foi abalada? Nunca teve dúvidas?
Dúvidas só no sentido de querer conhecer mais. Muitos acham que nós acreditamos na revelação como antigamente no Velho Testamento, no Novo Testamento, como se estivéssemos a viver nessa época. É uma das coisas mais identificáveis da igreja, um profeta que recebe revelação. Perderam – e os judeus entenderam isso perfeitamente – esse aspecto de sua religião. Desde 500 anos antes de Cristo até ao dia de hoje, não têm profeta. Já não há mais revelação para eles.
A igreja mórmon tem a particularidade de todos os seus presidentes serem também profetas.
E têm a revelação. É interessante que só existem três religiões que aceitam que alguma vez tiveram profetas que receberam a revelação: a judaica (a evidência disso é o Velho Testamento), a cristã (a evidência é o Novo Testamento) e os muçulmanos (a evidência disso é o Corão). Mas os três dizem que tudo acabou, já não temos mais e já não há evidência das revelações. Quando a igreja foi restaurada, novamente revelações, e isso acontece e continua até hoje.
Acredita que por a igreja mórmon continuar a ter o que chama de revelações continuamente pode ajudar a mantê-la moderna? As ditas revelações adaptam-se também aos tempos em que surgem?
Sim, porque hoje vivemos numa época diferente da época de Moisés e de Noé. A revelação de Noé era: construa uma arca. Essa revelação não se aplica a nós. Cada profeta recebe revelações de acordo com a circunstância da cultura no dia dele.
Ainda que a igreja mórmon tenha banido a poligamia há mais de meio século, é verdade que não se conseguiu descolar desta imagem. Porque é que não foi ainda capaz de se desprender desta representação?
Eu acho que isso vem por causa de uma das perseguições. Quando essa revelação foi dada, Joseph Smith ficou muito chocado.
Na altura a introdução da poligamia foi vista como um acto de coragem.
Exactamente. Não era contra a lei, na época, mas foi uma coisa muito difícil. O Novo Testamento diz que, nos últimos dias, tudo será restaurado e entre essas coisas está a poligamia. Moisés teve várias esposas, Abraão várias esposas. Mesmo assim, foi chocante. Uma das coisas que isto fez foi que, para poder viver esse mandamento, a gente tinha que saber que vinha do senhor porque era tão contra a cultura. Muitas pessoas não podiam aceitar e saíram da igreja. Isso forçou ter um grupo de membros que sabiam que isto veio do senhor e era um grupo muito poderoso. O Frederick G. Williams não entrou na poligamia porque morreu antes disso entrar, mas o filho dele teve uma segunda esposa e o filho dele, meu avô, também teve mais do que uma esposa.
Falava há pouco de perseguição. Sente que os mórmons são perseguidos?
Sim, no sentido em que acham que quem acredita em revelação hoje deve ser ignorante. Mas a verdade é que a igreja mostra e promove educação, por isso tem universidade e querem que todos tenham toda a informação possível. Isso vai totalmente contra o que dizem os que atacam. A mesma coisa em relação à poligamia. [Os críticos pensam:] “Eles fizeram isso porque eram motivados pelo sexo”. O que acontecia na verdade é que os homens eram chamados para servir missões e eram as mulheres que ficavam em casa e que fizeram brotar e florescer o estado de Utah porque os homens estavam sempre fora em missões.
Essa crítica de ignorância diria que não se aplica apenas à igreja mórmon. Vivemos numa altura em que há uma perda de fé, é algo que é transversal a todas as religiões. Concorda?
Sem dúvida. Especialmente na Europa que era sempre o local onde a religião ocupava uma posição muito importante e agora já não. As igrejas estão vazias e isso está acontecendo também nos Estados Unidos e também noutros lugares.
Qual acha que é a origem desta perda de fé?
Tudo o que está na base disto é Satanás.
Sendo o jogo uma prática banida pela igreja mórmon, consegue visitar Macau e alhear-se da presença constante dos casinos?
Nós chamaríamos isso de mundanismo, as coisas que atraem, como muitas outras coisas, como a bebida, o álcool, o sexo. Mas podemos viver aqui sem participar nessas coisas. Las Vegas é um exemplo disso. Lá a igreja floresce muito bem, tem templos, tem capelas.
Em Macau teve oportunidade de visitar a igreja mórmon local. Quem foram os mórmons que aqui encontrou?
Inicialmente eram os macaenses e os chineses ou os portugueses que estavam morando aqui. Agora que tivemos a troca, eu notei que a grande maioria, talvez 80%, dos membros da igreja em Macau são filipinos que entraram na igreja nas Filipinas e vieram para aqui trabalhar. Temos três congregações: uma que é para os que só falam chinês, outra para os que falam inglês e outra para os que só falam português. A congregação que fala inglês são quase todos filipinos.
É muito comum chegar-se à igreja mórmon através do catolicismo?
De todas as religiões, inclusive da muçulmana e da budista. Um dos apóstolos chama-se Dong e é de ascendência chinesa e eles eram todos budistas. Vêm de todas as religiões.
Aprendeu português durante a sua missão como missionário no Brasil. Como é que passou deste primeiro contacto com a língua portuguesa para o seu trabalho enquanto tradutor e poeta?
Na minha época, geralmente os jovens eram chamados quando tinham 20 anos. Hoje, um jovem, se já completou a secundária, pode servir quando tem 18 anos. Na minha época eu pude passar pelos dois primeiros anos da universidade, servi a minha missão e depois voltei para completar o bacharelato. Nesse período intermediário, quando voltei para tomar a decisão de qual seria a minha disciplina, eu já estava tão entusiasmado com o português e a cultura em português que decidi seguir o português.
De Jorge de Sena traduziu essencialmente a sua poesia e apenas um conto. Porque é que se ficou apenas pela poesia de Sena?
Já era muita coisa e já havia outros que tinham traduzido a prosa dele. Eu achei que podia fazer uma contribuição na poesia. Alguns já tinham traduzido a poesia de Jorge de Sena, mas não toda ela, então eu quis dar uma visão mais panorâmica.
Num texto que escreveu a evocar Jorge de Sena, disse: “Quando, já professor, fui tentado a não ler os trabalhos dos meus alunos com atenção, a imagem de Sena diligentemente lendo os meus trabalhos vinha-me à mente e eu cobrava a coragem do seu exemplo para enfrentar o desafio com resolução e esmero”. Qual a primeira imagem que o poeta transmitia enquanto professor?
Era evidente que ele era uma pessoa com uma mente enciclopédica, que conhecia tudo e isso foi para mim e para os outros graduandos uma bênção, mas um desafio também. O que era mais interessante é que ele era muito afável. A gente podia-se aproximar dele, fazer perguntas. Ele fumava para caramba, o que para os mórmons não era coisa fácil.
Mas isso nunca o afastou dos lugares mais próximos de Jorge de Sena durante as aulas.
Nunca. Quis ficar ali porque era muito mais interessante, porque podia ver as notas, os livros, os ‘doodles’ [rabiscos] que ele estava fazendo. Era uma mesa extensa, havia talvez 20 alunos e não queria ficar bem longe.
Que distância é que ele impunha entre professor e alunos?
Ele sempre era o mestre, mas ele gostava que nós fizéssemos perguntas e apresentações.
Como é que a vossa relação se alterou quando se voltaram a encontrar na Universidade da Califórnia, ambos enquanto professores?
Ele continuava a ser o mestre e eu o discípulo, mas ele sempre com muito respeito e dava muita glória a mim. Depois cheguei a ser o ‘chairman’ do mesmo departamento onde ele tinha sido o director.
A propósito de duas observações de Jorge de Sena que marcaram o poeta, escreveu: “Num seminário ele deu um testemunho comovido da existência de uma força maligna com a qual tivera uma experiência pessoal. Não entrou em detalhes, mas disse-nos que essa força independente era real e que tentou destruí-lo e o teria vencido se ele não tivesse mudado de rumo”. A que estaria Sena a referir-se?
Estava falando do diabo. Ele teve uma fascinação sobre essas coisas e muitos dos títulos das obras dele indicam isso. Era no surrealismo que ele tocou contra essa coisa, quando ele deixou de controlar os seus pensamentos na escrita automática. Tudo o que você escreve nas primeiras oito horas não serve para nada, mas quando você está exausto e a subconsciência começa a tomar conta, aquilo que você escreve deve ser poesia pura.
Foi a última pessoa a entrevistar Jorge de Sena, apenas um mês antes da sua morte, e o poeta saberia que aquela seria a sua última entrevista. Qual a última mensagem que o poeta quis deixar neste mundo?
Eu fiz uma pergunta em que citei que ele era poeta, romancista, novelista, crítico e uma série de coisas e que os tópicos incluíam o sexo, Satanás, a política, a cultura. Eu perguntei qual desses tópicos seria o tópico principal da sua obra e ele disse todas elas. Acrescentou o termo “satírico” que ele tem em tudo. Eu diria que a mensagem dele é: “Eu escrevi sobre tudo, mas também eu era satírico”. Talvez o último poema que lemos indique a mensagem que temos que deixar ao lume das águas todas as tribulações, todas as encrencas e tudo o que nos tocou para ter paz.
Nessa mesma entrevista é impossível não notar a raiva e amargura, principalmente quando ele está a ler os poemas sobre a sua pátria que nunca deixou de ser Portugal. Acredita que, no final da sua vida, Jorge de Sena conseguiu resolver internamente o facto de não ter sido devidamente reconhecido em Portugal? Ou esta mágoa acabou por o acompanhar até ao final da sua vida?
Eu acho que essa mágoa ficou até ao fim. Uma vez que veio a República ele quis de alguma forma participar, talvez ser ministro da Cultura, trabalhar numa universidade, mas nunca foi chamado e isso magoou-o muito. Então a mágoa ficou sempre, o seu país nunca o aceitou.
Porém, Jorge de Sena nunca deixou de se assumir como português.
Exactamente. Nunca. Ele amava a sua pátria, não amava as coisas que sua pátria fazia.